Veste um pólo verde onde se lê “storyteller” nas costas, o que me deixa de imediato de pé atrás. Líderes, experts e outros que tais, se se auto-denominam, raramente o são. Porém, é um facto que este tem histórias e uma necessidade insistente de contá-las. Consomem-no, entende-se depois. Procura a pergunta certa à resposta ideal e quase nos censura pelas pobres perguntas, o storyteller. Como os melhores coaches, mensageiro anunciado, se lhes dermos o melhor de nós, premiar-nos-á com o melhor de si, promete. Tem um tique de linguagem que o torna irritante. Everyone’s good? That’s great. Vamos agora subir acolá. That’s great. Ainda abunda a prostituição. That’s great. Ainda operam aqui três cartéis. That’s great. O dinheiro que me vão dar de gorjeta servirá para pagar o imposto semanal a cada um desses cartéis. That’s great. Entende-se só depois.
Ainda vive ali com a mãe, na famosa comuna 13, outrora o bairro mais perigoso da cidade mais perigosa do mundo. Vai cumprimentando uns e outros que encontra enqunto subimos pela maré de casas, chapa empilhada em tijolo e colorido em graffitis. Agora estou ali eu e uma cambada de outros turistas. Assegura-nos que não precisamos de ter medo, podemos tirar fotografias à vontade sem que nos roubem os telemóveis e as caras máquinas fotográficas. Onde há gangsters, não há ladrões, descansa-nos. Paradoxalmente, é verdade. Sinto-me bem mais segura ali do que a caminhar no centro da cidade. Estranhamente segura.
As histórias que nos conta são as suas, é óbvio no seu tom de voz quando polariza ricos e pobres. É com aspereza que apresenta o seu lugar de invasor a agir em legítima defesa. Há marcas que se notam nele e pergunto-me se se referiria a si quando diz que todos merecem uma segunda oportunidade. Sobretudo os criminosos, porque o que já foi lá foi e já não se pode mudar. Quando conta dos deslocamentos forçados, da leviandade com que os criminosos decidem que aquela família já não pode viver naquela casa, seja por estratégia ou capricho, há uma desilusão que se sente na sua voz.
Também mais tarde, quando fala das linhas invisíveis. Com espanto, aluna atenta, lembro-me primeiro das linhas invisíveis da anatomia, que tanto ridicularizavas. Só depois percebo a gravidade dessas fronteiras que aparecem e desaparecem conforme dita a vontade de quem manda. A partir de hoje não podes passar nesta rua. E a vida muda. É preciso sair mais cedo de casa para chegar à escola por outro caminho, mais longo. Acabou-se, ir brincar para casa do amigo que mora daquele lado da linha. À conta de linhas invisíveis viu a sua vida delimitada e dois amigos morrerem. Distraídos, passaram da linha. Literalmente. Há agora raiva na sua voz. Diz-nos por mais do que uma vez que somos privilegiados. Quer que, como turistas, tenhamos clara consciência do nosso privilégio, a caminhar ali sem pensar ou ligar a linhas que não vemos e desconhecemos. Nós, privilegiados, quase nos grita.
É uma relação de amor-ódio. Despreza-nos e, ao mesmo tempo, precisa de nós. Não o esconde, não teria porquê. Os locais reconhecem a importância do turismo e não se inibem de clarificar o seu papel na transformação da cidade. Não como consequência inesperada, note-se, mas como ideia estrategicamente concebida, pois o turismo alavanca a economia e distrai os criminosos. A cidade criou oportunidades de turismo para que os turistas viessem, pensamento genial. Por isso as escadas rolantes na comuna 13. Não para os moradores, que bairros de lata os há aos montes pelas montanhas e colinas e sempre se desenrascaram bem sem escadas. Não pela mobilidade, mas pelos turistas. Para que, como eu ali, viessem ver, deixar dinheiro, afugentar o crime. Nós, parasitas, privilegiados e essenciais ao equilíbrio daquele frágil ecossistema.
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